"Como sabemos, o efeito de um livro sobre nós, mesmo no que se refere à simples informação, depende de muita coisa além do valor que ele possa ter. Depende do momento da vida em que o lemos, do grau do nosso conhecimento, da finalidade que temos pela frente. Para quem pouco leu e pouco sabe, um compêndio de ginásio pode ser a fonte reveladora. Para quem sabe muito, um livro importante não passa de chuva no molhado. Além disso, há as afinidades profundas, que nos fazem afinar com certo autor (e portanto aproveitá-lo ao máximo) e não com outro, independente da valia de ambos."
(Antônio Cândido; acessível em: http://literatortura.com/2013/05/26/antonio-candido-indica-10-livros-para-conhecer-o-brasil/, em 30 de maio de 2013)
O poeta maior ou
o melhor, quando à luz do gênio, não existem, como muitos deles (Ferreira
Gullar, por exemplo; e em outros registros, Drummond, Bandeira) costumam nos
demonstrar. Contanto, ler poesia é um ato de intimidade, silêncio; é nos
representar n’outra linguagem que não a nossa comum, n’outro ser que nos é
semelhante, que nos é no poema, — e, por isso, é para nós constante
preferi-los, estes àqueles poetas, conforme o nosso sentimento e o nosso
momento, bem como diz Cândido acima.
Deveras, ler
poesia é comungar e imergir-se, é descobrirmo-nos entre os homens, sob o
vínculo, o fio que nos liga a nós humanos. Leva-nos ao mais alto e ao mais baixo
de nossa alma e da espécie e nos transpõe, para além do íntimo, ao universal.
Mas depende de uma relação, estabelecida mormente pelo afeto e a proximidade. Assim,
surgem em nossa vida aqueles poetas e poemas que, por um lado, nos fascinam a
imaginação e, por outro, dizem-nos intimamente, transpondo em palavras os nossos
longos silêncios. — Poemas como se fossem nossos. — A graça, a gratificação
desse momento nos faz ajoelhar como em prece e bendizer o que antes não passava
de monotonia, e transformar o que antes era presa condição, sem nos mover com o
corpo, porém com o espírito.
O conhecimento,
de um ângulo, e a transfiguração, de outro; como matéria sagrada (não
religiosa), verdade divina (não tendenciosa), pureza, a poesia, quando brota da
obra de arte, é assim um momento arroubado da monotonia do mundo, sem muita
explicação. E por isso que a poesia escrita, o poema, ainda mais que as obras
acerca da história e das ciências, é de uma avaliação que dispensa o aparato técnico;
predomina-lhe a intimidade, a subjetividade, o emocional. Isso posto, ignorando
aqui outras particularidades, que se referem a dados mais estatísticos:
importância histórica, política etc. do autor ou do poema, estilística,
biografia e assim por diante.
É de extrema
cautela citar, pois, como o fala Antônio Cândido no excerto aqui citado, um
número definido de obras acerca de um certo assunto, dentro de uma certa intenção,
mesmo que sob determinado aspecto. Contanto, o limite é necessário, quando se
corre o risco de formar-se uma lista infinita de nomes, considerando o prazer
fluido de cada obra em que, durante a leitura, nos sentíamos em êxtase. Também
é necessário que se limite a fala a um gênero único, para que não se torne por
demais abrangente a indicação. Pois a poesia não é só versificação. Há textos
de extrema poesia escritos em forma prosaica. Entretanto, limitando-me a esses
pareceres, tentarei escolher meus 10 poetas de cabeceira aqui.
Não me vem
primeiro nome à lista que não Manuel Bandeira(1). Como é fascinante, mesmo, a sua poesia. Livre do cunho
intelectualista, envolto da emergente reflexão moderna da língua, Bandeira
usa-se da infância e da inocência para se expressar; fala como uma criança, mas
que cantasse quando falasse: simples e sem malícia. O tempo todo, mesmo em seus
poemas elaborados mais de forma clássica, parnasiana, como no meditativo Soneto Inglês Nº 2. Neste, embora a
técnica lhe seja regular, desde a sua objetivação histórica em forma rítmica de
3 quartetos e 1 dueto, versificação “shakespeareana”; contudo, a declamação
segue em ritmo tenro, atenuado, movido por palavras de fácil assimilação,
arredondando as bordas do soneto numa transição macia de verso para verso. Uma
estrutura clássica, mas moderna, nova, (inovada), ao coração dos interlocutores
globais. Um dos aspectos da poesia de Bandeira que mais me encanta, deveras, é
este: a proximidade que cria com seu leitor, o doar-se infante ao nosso
coração, e não diretamente à reflexão ciosa, ao raciocínio (nem da técnica nem
de um vocabulário arcaico, nem do conteúdo profundo, que pode efetuar-se em diversos
níveis de profundidade, desde a criança ao mais sábio adulto).
Do Manuel, partindo
do formato de sua escrita poética e seu momento, me veio à mente o Craveirinha,
José Craveirinha (2), de
Moçambique. Poeta maior de Moçambique, dizem. Longe de conhecê-lo como conheço
o Bandeira, por exemplo, falo dos versos esparsos que dele li e que cravam na
minha cabeça como máximas verdades, como verdades celestiais; contanto, jamais
inertes, resignadas ou contemplativas, como gritos abundantes de revolta e
desejo. Craveirinha incha o peito do leitor com um tipo de sentimento que une
suor, orgulho, força, robustez e docilidade, e, às vezes, feminilidade onde só
seria possível o ódio, a espada, a batalha. Penso nessa sua capacidade de nos
fazer levantar não sei de que forma, mas jamais abnegada, alienada. Insurgimos
por dentro, seja pela fé ou pela resistência. O poeta da força, na minha breve
leitura, ainda incompetente, do autor. Passo deste, pois, para o Carlos
Drummond.
Não é apenas
elencar grandes nomes, ou talvez seja; mas CarlosDrummond de Andrade (3) me vem à mente como as duas coisas: leitura
obrigatória e maravilhada. Leitura obrigatória por ser um clássico. Sua técnica
é tal qual a camoniana d’Os Lusíadas, para mim, contanto moderna.
Poemas de reflexão rítmica densa, que trazem em sua versificação a própria
história da literatura universal. Metapoesia, em todas as suas nuances; digo,
sempre metapoesia. Drummond tem a grandeza ou a maldição de refletir, trazer à
tona e transformar toda a canonização literária transpondo-a para a atualidade
em forma dúbia de amor intencionado: raciocínio e paixão, inalienáveis. Imerso,
decerto, em suas leituras profundas e profícuas da escrita artística e
histórica, creio que tenha incorporado (mais que simplesmente aprendido) uma
vastidão estilística em seu ethos,
que em projetos e fases lhe viessem para as mãos e derramassem-se em poesia
para nós, leitores. No entanto, não havemos de nos prender à técnica: sua
imensidade inchava-se da verve poética, do sonho e da sombra, e da inovação.
Complexo e reflexivo, penso eu, e com momentos líricos plenos, lidos sempre em
face da teia social em que se enredara, lançando-a, contanto, ao cosmos e à
universalidade, de forma magistral. Mente ímpar.
Seu sentimento
de “gauche” na vida, em exceção do
reconhecimento que fez de nossa pequenez no universo, me remete, em sequência,
para o poeta mais “torto” de toda a história, Charles Baudelaire (4). Afirmo isso não como uma verdade,
mas como um sentimento em virtude de sua obra poética. Quando se lê Baudelaire,
o espírito mina-se de contrariedades, contradições; retoma-as, reflete-as,
apavora-se com elas e, ao fim, jamais torna a ser brando como o pudera:
entorta-se. A experiência de se ler o autor faz com que desnorteemos
imediatamente nossas vistas, transfigurando ou obscurecendo nossa visão parcial
de mundo; bem como sua poesia o fez com a própria história da literatura. Uma
vez submersos no mar rebelde e subterrâneo deste poeta, jamais voltamos ao doce
ar de nossas adolescidas reflexões. É como se nos emergisse de dentro a
derradeira angústia, mas também a coragem e o ataque. Cansamo-nos, em suas
páginas, da mediocridade humana imposta pelos liceus da boa conduta, que nos
levam sempre ao desprezo de nós mesmos. Erguemos nossa voz recôndita com a sua
e levamos a todos um grito de renúncia e de ressurreição; tal qual o anjo
Lúcifer das páginas de John Milton, no Paraíso
Perdido, quando brada mais ou menos assim: “no
Inferno reinar nós faremos, em face de curvarmo-nos escravos perante um Céu que
nos oprime!”
É, creio, a mesma voz que emerge do interior de Baudelaire, o mesmo grito de
revolta, levando-nos, leitores, às mesmas consequências, como uma maldição. Por
isso, sua poesia não é apenas fascínio, contanto insurreição.
Mais brando,
porque de romantismo menos rebelde talvez, embora também cavernoso e escuro,
ouvimos erguer-se a voz de EdgarAllan Poe (5), que a mim não me fugiria citá-lo, jamais. Contista, sua
poesia talvez seja menos discutida no Brasil que seus contos, mas clássicos há
dele que, enquanto houver história, creio que se lerão em voz alta, com
entusiasmo pleno e meditação. O Corvo,
seu maior exemplo, não se trata apenas de um poema romântico, mas de um
cântico, um Hosana à literatura e à genialidade, ao mais alto da capacidade
humana (como lhe é comum em sua poesia). O suspense, o clima e o horror da
personagem envolta pelo mistério nos tomam do começo ao fim da leitura, sem
fôlego, sem ter para onde fugirmos. Pois seus versos, inchados de significado
em cada palavra, cantam-se sonoros independentes da voz. Seus momentos líricos
são epifânicos, musicais, como corais que levantassem a voz no teatro, graves: com
litanias, atos de contrição, culpas internas e noturnidades. Poe inunda-nos. E
sua poesia cantante me faria voar direto ao coração libertário e apaixonante de
nosso grande poeta brasileiro, Castro Alves, embora fossem ambos um pouco controversos
no sentir. No entanto, impede-me o limite de 10, tendo eu que seguir a um
outro, que me recorda minha própria noturnidade, traz à tona minha alma mais simples
e corriqueira.
Emergindo, assim,
do coração romântico e decadista desses autores acima, trago ao calor da mente
agora Omar Khayyam (6) e seus
Rubaiyat. Não tenho qualquer
conhecimento sobre sua língua mãe e apenas parcas pesquisas e imaginação acerca
do ritmo de seus versos, mas toda vez que entro em contato com uma diferente
tradução de seus cantos, por extenso ou versificados e ritmados, fico entregue
à sua poesia. A sua angústia, a sua boemia tenra, suave aos ouvidos, contanto
mordaz, durante a natureza me extasiam, levam-me aos sertões de mim. Suas
palavras são como provérbios que nos afetassem a direção da vida, que nos
fizessem sentar e olhar bem por que estrada andamos, do princípio até ao ponto
onde queremos chegar. Ao ler Khayyam, sinto uma paz imensa, não obstante o
sentimento angustiante, a dor. Imerge-me, somente, absolutamente, naturalisticamente.
E a veia de
Khayyam, angustiada e desértica, rescende-me um poeta nosso, novamente brasileiro:
Ferreira Gullar (7). Gullar é
poeta semelhante a Drummond, a meu ver, contanto de verve objetiva. Drummond é
bastante obscuro, obumbra-se dentro de si, em “aletria”, enquanto Gullar preza
pela maior objetividade linguística. É o poeta pós-moderno por excelência. Sua
linha de raciocínio é sempre audível diante de seus versos, não que por isso
perca a sua linha patética, pois o poema só não é prosa por isso. A realidade
social, nele, alcança a realidade cósmica sob um mistério efetivo: não parece
sair da objetividade, quando, de repente, nos arrouba e nos leva para dentro e
longe de nós. A realidade é sim sobremaneira o seu impulso poético, a ironia, o
desmascaramento, a envergadura sociopolítica; creio que esta última seja o que
o lança à contemporaneidade, distanciando-o de seus predecessores, vinculando-o
a José Saramago, por exemplo: na reconstrução e transformação da história. Concreto,
ligo-o ainda à sequencialidade de João Cabral de Melo Neto, outro imenso poeta.
Mas o que me atrai a seus remansos é a superação da experimentação moderna e a
transformação do poema em linguagem sólida, de paixão pétrea (menos pétrea que
Melo Neto) e inventividade móvel, renovada, não mera experiência nunca. Sua
paixão nítida e crua, que — com asas arquitetônicas — é capaz de voar...
Capaz de voar
também, mas com asas de penas e ossos de pássaro, é a poesia campal e feminina
de Helena Kolody (8), a que
me reporto quase como um contraste, lembrando a lírica tênue ocorrida em poetas
como Cecília Meirelles e Vinícius de Moraes. Perante a paranaense ucraniana
arraigada aos matizes e aos valores da terra, imersa pelos campos e gramagens,
impossível não se apaixonar por alguns de seus versos. Seja a criança ou o
professor, ambos têm a mesma sensação, não importa a maturidade. Acolhendo
desde os modelos orientais, há sua poesia mais complexa, mas a poetisa é
clamada mormente em seu imenso poder de concisão. Três frases, um haikai
apenas, mas nos vem aos olhos uma imensidade... entre paisagens, noites, estrelas,
tristezas, alegrias, esperanças... A feminilidade é universal e é capaz de
desembrutecer o mais rígido e cruel mármore, de fazer crer o mais frio coração.
O tamanho de sua beleza é que me extasia, conduz-me sempre pelo caminho das
minhas raízes, do meu amor, do meu pequeno chão — que nela se faz imenso...
Dócil e delicado, seu verso. Amoroso.
Mas se Kolody
nos chama para as nuvens, nos faz clamar a força do sonho e da tênue emoção, há
um poeta que nos evoca na intimidade, que nos convoca à objetividade, que nos
quer fazer homens e irmãos: Walt Whitman (9), o grande democrata e humanista. Deveras, todos os títulos
que possam render a ele a insígnia de cantor da humanidade lhe serviriam, desde
que em busca de expressar a fé que Whitman impunha à sua redenção. Ele nasce de
um sentimento de comunhão, de amor ao próximo. Mas esse próximo não é nele nem
a alma, nem a obrigação, a imposição, o julgamento, a cor; o próximo, a ele, é
o corpus, o corpo, a chama, o calor,
o amor, a energia; é o todo, a unidade, a união, desde o universo além; o
instinto, a carne, presentes na natureza natural. Imagina um grande abraço
mútuo, cheio de irradiação, de paz. Invoca os homens agora de dentro de um só
coração, a humanidade, ignorando quaisquer fronteiras de terra, raça, ou que
quer que sejam outras diferenças. Cantor da democracia, acredita no homem como
espécie fraterna, que se alimenta do afeto e do toque, assim o vejo. Cantor
maior da liberdade, desde a invenção do verso livre, desenha em seus versos o
livre sexo, a livre palavra, o livre toque, toda emancipação possível.
Sentimo-nos albergados na sua paz, quando o lemos, e no seu amor, e por isso o
amo tanto e seu pensamento me acompanhará até a morte.
E, por fim, dos
salmos entoados por Whitman, trarei à tona o meu poeta por excelência, aquele a
que a todo momento me torno. Talvez por fazer parte da minha alma quase como se
tudo que tenha escrito fosse aquilo que hoje sinto. Não há explicação plausível
para a minha ligação com FernandoPessoa (10); ou melhor, há: a comunhão na poesia. Como se cada vez que
o lesse, outra vez me encantasse, diferente a cada momento, ou igualmente, como
desde o começo. Pessoa para mim hoje é como um amigo íntimo, com quem converso.
O seu Alberto Caeiro, meu poeta dileto, desmistifica o mundo e desnuda-o para
nós, mostra-nos como estamos errados
em impor pensamento e mistério às coisas, ensinando-nos a ser felizes com
naturalidade. E assim creio, conquanto a impossibilidade de acompanhar em alma
o seu raciocínio. A liberdade de toda metafísica e religião, como
desnecessárias, como falsas, já que para Alberto passar para além da natureza natural
seria traí-la. A sua controversa ou contraditória filosofia nos faz acordar, de
manhã, tirar seus versos de sobre o peito e desnudar o mundo lá fora, tudo de
novo, mas renovado. Já o seu Álvaro de Campos, extremamente febril, é a
explosão sensacionista que, creio mesmo, fora o próprio coração recôndito do
Fernando palpitando, aquele que podia gritar sem nenhum receio. Só poderia ser
futurista, um tal ser imerso no ópio da atualidade e da efemeridade. Se me
formulam nos heterônimos de Pessoa duas imensas tentativas — realizadas: a
leitura e interpretação das eras, desde sua matemática até a sua mística
esotérica, representadas na concretude de pessoas diversas envoltas num plano
de representação histórica e interpretação fantástico, ao ponto da
despersonalização; e, ao mesmo tempo, a negação e a interrogação diante das
ideias canônicas historicamente construídas, desde a inversão (em Caeiro e
Campos, por exemplo) da ideia platônica: a efemeridade essencial. Mas ainda há
sua outra poesia, a obscura, a que não restou assinar senão como Pessoa ele mesmo: um manancial de
sensações cotidianas levadas ao mais alto grau da linguagem e do sentimento, e
do esoterismo, arroubando-as da cotidianidade e lançando-as à eternitude. Um
estupendo espasmo desde o fogo da terra até o Big Bang. Para mim, Fernando seria o poeta-pai, poeta-chave,
poeta-luz que me ilumina. A minha própria poesia brota da dele, nasce-lhe, às
vezes, nem sei se renovada ou a mesma. Mas não me sinto angustiado com isso, me
sinto feliz. Sinto-me feliz porque a poesia que dessa gente emerge torna-se em
mim também o que me emerge, a palavra que me conduz para cima. O sonho que não
é senão a única realidade, além do trabalho diário e do vazio. E por isso os
lemos. Como disse um dia o crítico Jô do Recanto das Letras, “buscando a luz
que justifique ‘nossas’ vidas sem lógica”.